Hoje eu chorei
(Reflexões sobre depois de amanhã, quando a guerra iniciar)
Pacard
Sou um homem de 45 anos de idade. Em outras circunstâncias, diria eu, “bem vividos”. Minha definição sobre minha personalidade tange para: debochado, irônico, sarcástico, brincalhão, gosto de explorar o tirocínio e me divirto deslizando pelas palavras no cáustico exercício da retórica, sempre que a oportunidade me permite esta iguaria da razão.
Mas hoje eu chorei. Não sou emotivo, sou bastante frio, na verdade. Pelo menos na minha aparência sizuda. Não manifesto minha emoção chorando. Isso me causa muita dor nas vezes em que sofro sem conseguir (ou desejar) chorar. Dor física. Dor nas costas, dor nas mãos, dor no peito.
Mas hoje eu chorei. Meu dia foi pesado. Deu tudo certo. Consegui fazer tudo o que me propus fazer. Despachei todos os documentos que a fria burocracia em busca de dinheiro me obriga a despachar. Todos os contratos foram devidamente preenchidos e assinados. Está tudo certo. Mas eu chorei.
Chorei quando pensei na guerra tão próxima. Chorei quando pensei que a humanidade se defrontou consigo mesma numa muralha de vidro fino, fraco e transparente. Tão transparente, tão fino e tão fraco que se estilhaçou em incontáveis cacos diante da arrogância de dois ditadores que mentem em nome de Deus. Que anunciam calamidades em nome do povo. Que inebriam o povo em nome da segurança. Que espalham a morte em nome da vida.
Chorei ao ver a demonstração de força de dois loucos que não conhecem a palavra “perdão”. Chorei ao ouvir os sons de bombas fazendo coro ao choro dos pequeninos que certamente irão perder seus pais; dos pais que perderão seus pequeninos; de mães que chorarão seus filhos; de filhos que nunca mais verão as suas mães; de pais não mais terão braços para filhos embalar, e nem filhos para afagr em seus braços.
Eu hoje chorei, como chora um homem, ao saber que em nome do “orgulho nacional” o céu cairá sobre as casas sob a forma de aviões e a noite se iluminará sob o estrondo de bombas.
Chorei em nome de todos os que não poderão chorar, pois só se chora vivo. Não tive medo de que alguma bomba perdida venha cair no quintal de minha casa e destruir meu jardim, mas chorei porque vi dois loucos que nunca plantaram um jardim para ocupar-se nos dias de amargura, mas semearão sangue suficiente para regar tantos jardins, que dois homens somente jamais serãs capazes de plantar neles sequer uma única flor.
Chorei pelos velhos e pelas velhas, cujas tetas secas buscarão os lábios mortos de seus meninos para regar-lhes vida, mas em vão encontrarão pedaços de mãos e braços segurando pó.
Chorei sozinho a ver meu filho menino brincar de herói, e sei que chorei pelos meninos que não serão heróis, porque todo herói precisa morrer por uma causa nobre, e só pode morrer que uma vez viveu. E eles não terão tempo para isso, pois a guerra os quer do jeito que estão para tragar seus corpos, devorar sua carne e beber seu sangue.
A guerra é um demônio cruel e sangüinário, que devora virgens, velhos, moços, pobres, ricos, pretos, pardos, dourados, amarelos e sonhadores. Devora campos de trigo e incendeia casas. E tudo isso faz em nome da paz.
Eu hoje chorei. E orei pela paz.