Antes e agora – Livre pensar sobre as tendências
Pacard
Quando eu era pequeno,não apenas porque minha familia era pobre, mas de fato, não haviam aparelhos receptores de tv na vizinhança. Alguns bares, espalhados pela cidade diapunham destas preciosidades, que era um chamariz perfeito para clientela. Happy hour, domingos, feriados e ate à meia noite, quando encerravam as transmissçoes dos dois únicos canais disponíveis,o televisor era o objeto de atenção, em geral dos homens, porque mulher que se desse ao respeito,não frequentava botecos.
Em casa, o rádio era o luxo disponível às mulheres e às crianças, que pregavam o ouvido, atentas a todos os detalhes da narração, ora das novelas, ora dos cantores que por sua vez, apuravam também a oratória e a dicção. Compreender o que dizia um locutor de rádio, ou "speaker", não exigia refinamento da audição. Aoenas da alma, que se envolvia nas tramas das novelas e das histórias fantásticas contadas pelos apresentadores.
Hoje, se somarmos os canais disponíveis da internet, a cifra passa de nove zeros, ou mais. Não se fidelizam mais as histrórias, os apresentadores ou os horários, mas o controle remoto, que pode levar à loucura o pobre usuário, caso a pilha minúscula esgote sua carga de elétrons pululantes antes de expirar a garantia do aparelho, cujas teclas ( quase me escapa a palavra "botões") estão invisiveis, tamanha a pressão exercida sobre elas, na ânsia que se forem mais apertadas, possam funcionar melhor.
Uma ida ao banco para movimeno de conta, era um acontecimento. A calça e a camisa deveriam estar perfeitamente engomadas, os sapatos espelhando o mundo, a barba aparada nos homens (em geral ir ao banco cabia aos homens, pois "mulher não entendia de negócios"), o bigode "demodê" e o cabelo perfeitamente aparados, e um perfume muito masculino deveria emanar sobriedade por onde passasse o distinto senhor em sua missão honrada de efetuar um depósito, ou sacar as provisões para a quinzena, que ficavam distribuídos assim: uma parte no açucareiro ( sempre havia um açucareiro sobressalente para servir de cofrinho), uma parte na gaveta, dentro de uma caixinha entalhada, e uma pequenina parte embrulhada num lencinho branco sutilmente escondido no sutiã das senhoras, para pequenos pagamentos do dia a dia.
Hoje, o banco veio para dentro de casa à distância de leve pressão nas teclas, ou mais suave ainda na tela do Ipod. Dia desses eu mesmo tive o privilégio de consultar meu saldo enquanto cumpria o ritual das necessidades fisiológicas em casa. Um luxo.
Quando adoecíamos, após todas as frustradas tentativas de tratamento com ervas amargas e malcheirosas, linimentos pastosos ou emplastos "sabiá" sobre as costas, os nomes das doenças eram sintetizados em termos como "constipação", "lumbago", "terçol" "furúnculo" "dor nas cadeiras", "caxumba", "coqueluche", e coisas nesta ordem. Quando todos os recursos estavam em seu têrmo, ainda havia o farmacêutico, um velho bonachão, com ar autoritário, que manipulava certos linimentos e óleos essenciais e receitava colheradas repetidas daquilo várias vezes ao dia. Lembro de alguns: "Óleo de fígado de bacalhau", "unguento Salvação das Senhoras", "Biotônico Fontoura", "Linimento de cânfora com sassafrás", "Homeopatia Dr. Almeida Prado" e o maior de todos os vilões, enfiado goela abaixo para quase todas as doenças: "Óleo de Rícino".
Porém, em nada disso tendo êxito, restava então o Doutor. Aquele que nos examinada desnudos sobre uma mesa gelada, numa sala lúgubre, mais gelada ainda, com suas mãos brancas excessivamente geladas. Auscultava com um estetoscópio gelado, dava pancadinhas sobres os dedos em nosso abdômem (mesmo que a dor fosse no joelho), enfiava coisas metálicas com gosto estranho em nossa goela (ainda para a dor nos joelhos), esbugalhava nossos olhos e auscultava nosso pulmão e coração. Tendo todo esse ritual já cumprido, davam bom dia e faziam perguntas às nossas mçaes, que mesclavam os sentimentos entre culpa, dor, fragilidade, desespero, dor, humildade diante do impotência, e uma vontade louca de nos passar a vara assim que estivéssemos curados para que não fizéssemos mais -eu sei lá o que- nada que as deixasse tão preocupadas com nossa saúde.
Isto tendo ouvido atenta e pacientemente, o velho doutor (era geralmente velho), baixava os óculos enormes, e taquigrafava hieróglifos e inscrições obtidas em alguma civilização perdida, cujos textos nem mesmo Champollion fora capaz de decifrar, e com voz sepulcral sentenciava (parecia-nos ouvir o meirinho berrando: Todos de pé, que o Excelentíssimo Doutor pronunciará a sentença contra o réu confesso):
- Dê-lhe tres colheres deste primeiro, cinco vezes ao dia. O gosto é um pouco amargo, mas assim que terminar os dois litros, compre mais dois e continue o tratamento até o fim. As injeções de penicilina de 15ml serão aplicadas duas ao dia durante quinze dias. Recomendável que o menino não tome vento nem banho neste período, para não "recolher" a doença. (Como se depois disso tudo, além das tentativas caseiras, a gente ainda tivesse alguma força guardada para correr ao vento). Mas era isso, ou a morte. E morrer, naqueles tempos era coisa séria.
Hoje, voce espirra e já tem uma ambulância e dois helicópteros circundando sua casa (estou falando se voce tem um bom plano de saúde. Do SUS eu falo depois). Uma equipe de paramédicos paramentados como astronautasentuba você por todos os orifícios que encontrar, e ainda abre mais alguns para garantir que tudo foi feito para salvar a sua vida.
Em menos de tres minutos, você dá entrada no complexo hospitalar, onde um grupo de batedores vai à frente abrindo portas de vidro, em corredores amplos, ambientes decorados por designers minimalistas que não pouparam nas obras de arte nem nos concretos que emolduram vidros imensos, por onde se pode avistar um cenário desenhado por especialistas em paisagismo hospitalar.
Ao seu lado, no mesmo passo dos batedores e cirurgiões que já sucederam os paramédicos, correm seus advogados com documentos digitais prontos para receberem sua certificação digital que nem mais necessita de caneta ou impressão digital, pois equipamentos ultra sensíveis com eletrodos no seu travesseiro anestésico já fizeram uma varredura de suas ondas cerebrais e validaram seus códigos contidos nos chips combinados de sua assinatura mental.
Bem, se seu caso for de SUS, e se voce mora numa capital, então o caminho menos pior é deixar um crachá, que, mesmo que ridiculo, informará seu nome, grupo sanguíneo, cartão do SUS, endereço para devolução do cadáver, numero do PIS e senha do gmail para a família informar os amigos virtuais que de nada adianta ficarem enviando mensagens de otimismo em power point, porque você não lê mais. Neste crachá, caso sobre um espacinho, peça que te levem ao Hospital Universitário de sua cidade, onde você será atendido por um enxame de estudantes sonolentos que se arrastam aos bandos atrás do quase cadáver (que é voce), com planilhas na mãe e estetoscópio ao pescoço, que lhes dá um ar doutoral, embora ainda não descobriram para que serve aquela forquilha emborrachada ao pescoço. Eles fingirão que o escutam, e caso tenha sorte, até farã uma cara de empatia com sua dor. Depois de desenharem um enforcadinho, uma flor, um vaso, rabiscarem o nome da namorada ( ou namorado, seja de que sexo forem) e anotarem um numero de telefone da pizaria, deixarão voce atirado numa cadeira fedorenta e desconfortável, não necessariamente na mesma ordem, e se dirigirão, aos bandos, se arrastando, a uma salinha minúscula, onde pelo menos tres deles permanecerão do lado de fora por falta de espaço, e lá dentro, um velho professor mal humorado ouvirá tudo o que os residentes fingiram que anotaram, ele finge que acredita, e sem levantar os olhos, recomenda injeções de soro com algum entorpecente médio dentro, e a ordem de se livrar o quanto antes de voce, para que dê espaço a outro cadáver que se espreme, rola e geme, entre outros mortos-vivos no saguão de entrada. Voce foi salvo por mais uma hora. Teve sorte desta vez.
Ainda há uma opinião mais inteligente (ou ao menos mais bem elaborada e cercada de informações sobre o seu caso): Dr Google. Pense em uma palavra qualquer. Some o numero de letras desta palavra e multiplique o resultado pela sua idade. Divida o que encontrou pelo ano que voce nasceu e adicione duzentos e setenta e seis. É o numero de páginas que voce vai ler sobre seu caso. E vai chegar à um numero. Pegue este número e ligue já. É a farmácia que faz tele entregas sem cobrar taxa adicional. Solicite um anti inflamatório composto, um analgésico de ação multiplicada e um antiácido para neutralizar o efeito do anti inflamatório no estômago. Pode não funcionar. Mas e no SUS, funcionou?
Quando eu era pequeno, gostava de ver os anúncios de óleo para salada. Era saboroso só de se ver, quanto mais, imagine, comer aquilo. Alface, ovos cozindos e tomates ultra vermelhos que tinham gosto, pasmem, de ...TOMATE! Verdade mesmo. Nâo estou exagerando. Sou velho assim. Do tempo em que tomates tiham gosto de tomates. Pois o azeite, somado ao sal e vinagre, realmente realçavam o sabor dos alimentos. Hoje disfarçam, pois do contrário, seriam intragáveis ( ou indigeríveis).
As donas de casa não tinha vergonha de serem assim denominadas, pois estabelecia um domínio particular de comando, onde se sabia ao certo quem mandava no castelo. Levantavam cedo, e multiplicavam as horas do dia entre os afazeres culinários, os deveres de aula dos pequenos, ouvia as novelas do rádio, cuidava da horta, ia ao açougue e à mercearia, bordava uma toalha, costurava uma calça para o esposo, remendava uma roupa de trabalho, limpava a casa, levava uma fatia de bolo para a mãe que morava próxima, reunia-se com algumas amigas para fazerem visitas aos doentes no hospital da comunidade, na volta passava na igreja para combinar a programação do próximo culto com o pastor, ou padre, voltava e preparava a janta, que nunca era comida requentada, dava banho nas crianças e os colocava para dormir, e finalmente sentava na sala com o esposo, que lia o jornal, enquanto escutavam, juntos, o noticiário da noite e depois disso, uma programação musical. Se houvesse jeito, dançavam juntinhos e a noite ainda reservava alguns bons momentos conjugais para o casal.
O cavalheiro ( assim eram denominados os gentis e respeitadores senhores) também levantava cedo, tomava seu desjejum, realizava um breve culto com a familia, e após abençoá-los, tomava seu paletó, ajeitava a gravatinha fina entre a gola engomadinha da camisa excessivamente branca, e seguia sua jornada. As crianças, por sua vez, corriam dentro de casa com todo cuidado, mas lá fora se enlameavam, subiam em árvores, recolhiam lenha, cortavam grama para arrecadar uns trocados com os vizinhos, ajudavam os mais velhos e chamavam a todos de “senhor”, “senhora”, pediam licença, e até nas traquinagens, eram respeitosos.Esse estranho grupo social, chamava-se “família”.
Hoje, os grupos humanos são classificados como: “tios e tias”, “manés”,” tribos” e outros adjetivos desta grandeza ( ou pequenez). Pai e mãe evoluiram para “véios e coroas”. Amigos viraram “manos”, não no sentido de fraternidade, mas no qualificativo de “cúmplices em alguma atividade que seja melhor não tornar pública, para que não rolem cabeças. Amigos indesejados são denominados “azarões”, e o lugar de encontro dos grupos, que também se chama de “tribos”, pode ser o quarto de dormir, que também serve de depósito de equipamentos de som, traquitanas cibernéticas, latas de spray, botas expoticas, instrumentos de percussão, cordas e sopro, e se houver algum espaço, uma cama, ladeada por oito ou dez sacos de dormir. E caso o sistema de exaustão não esteja perfeitamento sincronizado com o ir e vir dos membros da tribo pelo ambiente, melhor que não se aproxime sem uso de máscara de gás.
O lanchinho da tarde de antanho é agora o ato de “bater um rango no muquifo da véia” (cozinha). Aquele tipo “sinistro” que passa sorrateiro evitando ser reconhecido pela porta do quarto, por algum tempo foi chamado de “papai”. A geladeira se tornou uma república de substâncias coloridas e multimarcas, cujos conteúdos não são mais classificados por sabores, mas por tabelas calóricas, e degladiam entre si pelo status de light, sem glúten, sem lactose, sem gordura trans, sem vitaminas, sem gosto e sem escrúpulos. É comer e visitar o SUS. (Não esqueça de levar o tal crachá, adicionando que além de alérgico a vitaminas dos complexos A,B,C,D,E,K, proteínas, glúten, lactose e sabor, também é alérgico a soro glicosado por ser diabético, e soro fisiológico, por ser hipertenso).
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CONTINUA, SE EU TIVER SACO.