Pacard
"Eram pássaros pequenos e nada mais. Apenas pássaros. E pássaros que não podem voar, não podem ser pássaros, pois voar é preciso para que sejam cada vez mais pássaros. E livres possam voar..."
Ouvia Debussy. Em plena metade da manhã, ele ouvia Debussy.
As manhãs não foram feitas para Debussy. Talvez Vivaldi. Debussy, não. Este tem seu lugar ao entardecer. Chopin, vem logo mais adiante, no alto da escuridão. Mas para as manhãs, Grieg poderia fazer companhia aDebussy.
No entanto ele ouvia Debussy enquanto a mão trêmula desenhava algo no vidro suado da janela. Desenhava ou escrevia. A água condensada pelo calor da mão escorria fazendo borrar o que já havia desenhado. Pareciam circulos, repetidos, mecânicos.
Mas seu olhar não mirava as mãos que parecia mecânicas no gesto hipnótico de circular no vazio. Olhava num ponto perdido entre o infinito de seus pensamentos e o horizonte avermelhado.
Uma lágrima verteu enquanto premia os lábios contendo o choro. Mas a alma já chorava havia muito tempo antes. Lá fora, o sol brincava de ir e vir entre nuvens apressadas, e o riacho murmurava quebrando o silêncio. Um pássaro perdido buscava gravetos com pressa própria dos pássaros, compensando o inverno que avisava de sua chegada. Com chuva. Fina e fria. Fechava-se o céu. As cores mudaram e cada vez mais embaçado o vidro ficava.
Debussy no velho toca-discos, continuava a tocar numa interminável homilía ao amor perdido. Numa elegia à solidão. Numa compensação pela dor. Apenas se quebrava a mágica combinação da música com a paisagem e o pensamento, o ruído das falhas do disco de vinil antigo.
Ele havia sonhado voar alto, mas calculara errado o alcance do vôo. Suas asas, como as de Ícaro, se partiram, escoaram no sol da realidade, e o levaram a estatelar-se no chão. Restava agora o recomeçar. Sem as asas, que eram seus sonhos. Com a dor da queda. Apenas ainda o olhar aguçado, para que disteante pudesse ver e sofrer pelo que havia perdido.
Seus sonhos eram tantos. Uns tangíveis, outros brumas. Pequenos sonhos povoavam sua alma como uma multidão de pequenos pássaros voejando em sua existência. Eram pássaros pequenos e nada mais. Apenas pássaros. E pássaros que não podem voar, não podem ser pássaros, pois voar é preciso para que sejam cada vez mais pássaros. E livres possam voar...
A música acabou, mas o disco continuou a girar. A agulha travou e o último acorde se repetia interminavelmente da vitrola....
Seus pensamentos se repetiam em pequenas partes. Apenas as partes boas de sere lembradas.
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