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Tendências e Empreendedorismo - Gramado como Modelo Palestra

terça-feira, agosto 03, 2010

Cada um tem sua própria história. Até mesmo que que não têm história nenhuma para contar, ou então os que não saibam contar sua própria história, definitivamente têm uma história a ser contada. Para ter uma história, basta deixar que o tempo passe. E para que o tempo passe, não é preciso fazer nada de especial. Ele passa mesmo assim.
O que nos torna especiais, valiosos ou não, é a nossa história pessoal. Umas ricas. Outras medíocres. Mas todas elas são histórias. A minha, a sua, a de cada um e a de todos nós juntos.
Esta é a minha.
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SERRA DO PINHÃO
Vencer não é só vencer, mas perseguir vitórias. Cada dia tem a sua vitória e cada dia tem percalços. Um de cada vez alguém deixa a arena: os tropeços, ou as vitórias.
A Serra do Rio Grande do Sul é desenhada por belíssimas paisagens entalhadas por vales, montanhas, rios, campos e matas. Cada detalhe desenha um manto multicor de vida que bem poderia ser um preâmbulo do Éden distante.
Pássaros que acordam o dia trinando sinfonias. Raios de luz que douram o vazio das árvores e uma brisa fria que rompe a manhã num sopro sereno. Finas gotas de orvalho parecendo diamantes líquidos. E o perfume dos pinhais soprado de longe e que se misturam com os acaciais floridos. Essas são as lembranças que me avivam uma saudade poética, uma nostalgia que não oferece a mínima possibilidade de acontecer de novo. Mas é doce lembrar, imaginar, construir cenários, aspirar odores e ouvir músicas que só se pode ouvir com os ouvidos da alma. Essas melodias serão sempre tocadas em tempos e compassos diferentes, de acordo com a alma que as evoca. E minha alma evoca essas lembranças. Boas para mim. Amargas para as pessoas que não tinham, como eu, um ano de vida. Por isso que as chamo de lembranças da alma, associadas ao que mais tarde conheci daqueles cenários, porque uma criança de um ano de idade não é capaz de construir cenários, nem assimilar compassos e notas musicais, nem mesmo identificar a brisa murmurando entre as frestas do choupo em que tudo isso aconteceu no curto tempo em que conheci o lugar que nasci: a Serra do Pinhão.

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É UM TICUDO COMADRE
A Serra do Pinhão era uma das colônias tuteladas pelo Distrito de Cazuza Ferreira, e esta, por sua vez, um Distrito de São Francisco de Paula. Distante cerca de trinta quilômetros da sede, o Pinhão, como era chamado, era cortado pelo Rio das Antas, e fica no triângulo fromado pelos municípios de Sâo Franscisco de Paula, Caxias do Sul e Bom Jesus.
Ali, meus avós tinham cerca de uma colônia de terras, aproximadamente cinquenta hectares. A maior parte de encostas, algumas íngremes, altiplanos, várzeas e uma planície cultivável. Dali provinham a vida. Roça de milho, feijão, batata, legumes, enfim, o suficiente para abastecer uma família e ainda vender o excedente para manutenção dos demais víveres, como roupa, remédios e algumas extravagâncias. Poucas, nada que lembre o que extravagamos nos dias atuais.
Minha mãe tinha então 15 anos. O lugar distante em que moravam, a falta de escola e a adversidade da vida que levavam, não permitiam que ela estudasse. Então minha avó contratou um professor particular para que a deveria auxiliar nos estudos. Auxiliou. E eu estou aqui.
Por razões óbvias, vou pular os detalhes. Para ganhar dinamismo, vou ignorar conscientemente a parte em que meu pai matou, numa briga, meu avô. Vou pular o drama da volta à cidade natal de minha mãe e avó, enfim, essas particularidades só interassam ao passado ruim. Ao passado que não traz lições. Só amargura.
Mas há uma particularidade que quero lembrar, isto é, relatar o que me foi contado e guardei como lembrança minha. Foi meu nascimento.
A parteira era uma preta velha. Acho que se chamava Inácia ou Anastácia. Ou algo assim. Era costume local que a parteira proclamasse uma espécie de vaticínio ou bênção sobre o rebento ao fazê-lo nascer. Se fosse menina, dizia que havia nascido uma "costureira". Se fosse menino, seria denominado "foiceador", um adjetivo atribuído ao macho, home rude que mostraria aptidão para a lide rude do campo, do machado, da foice, da enxada.
Secretamente minha mãe, com já 16 anos de idade, desejava algo melhor para seu bebê. Não o imaginava crescendo naquele fim-de-mundo, atrelado à falta de oportunidade e ao desígnio de se tornar uma submissa costureira, ou um embrutecido lenhador.
Um sábado pela manhã, pelas seis horas, eu nasci. Não sei se cantavam bem-te-vis ou sabiás. Talvez sim. Os dois, pois eram seis horas da manhã, duma primavera, 23 de novembro de 1957. Mas não acredito que o canto dos bem-te-vis, nem o trinado dos sabiás poderia abafar os gritos de dor de minha mãe naquele instante. Apenas uma expressão a fez sorrir, dita pela preta velha: "É UM TICUDO, COMADRE"!
Minha mãe diz que sorriu feliz e esqueceu da dor. Era um macho sim. Um menino. Mas não havia vaticínio ou agouro sobre mim. Não havia lugar entre os foiceadores nem entre as costureiras daquele lugar. Meu destino era o mundo. Não era uma profecia. Mas aquela expressão tinha significado. Nem a Serra do Pinhão, nem Cazuza Ferreira, nem Sâo Francisco de Paula, nem o Rio Grande do Sul, poderiam ter ferrolhos nos portões que me pudessem impedir de sonhar nas asas do minuano.
Ainda bem pequeno então, montei na garupa do vento e galopei vida afora. Longe da Serra do Pinhão. Eu era um ticudo. Isso me bastava para domar vendavais.

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DE VOLTA À GRAMADO
Depois da tragédia, resta recolher as cinzas, lamber as feridas e recomeçar. Foi isso o que fizeram minha avó, mãe e tios. Meu avô foi morto por meu pai. Minha avó vendeu, ou melhor, deu tudo o que tinha. As terras. A alegria. A esperança. Contratou uma carreta e um caminhão de frete, isso não sei ao certo. Mas não foi nada confortável, disso estou seguro. Foram cento e trinta quilômetros por estradas de chão, carreiros por escarpas íngremes e um trajeto por um lugar chamado "Passo do Inferno", pela estreiteza do caminho ladeado sem nenhuma proteção por um penhasco de dezenas de metros de altura.
Na carreta que gemia a dor de duas mulheres, dois meninos e um bebê, as "matolotagens", numa expressão usada por minha avó. Eram os trastes, as muambas, os trapos de uso da família trazidos para a nova morada. O patrimônio que restava de uma vida de trabalho. Os poucos mijados que serviam ao rancho de tábuas toscas de pinheiro, cor de cinza pelos anos, cerno puro de pinheiros antigos, que desmanchado foi levado e reconstruído num cantinho de terra sem tamanho definido. Nem precisava: era um empréstimo de parentes condoídos.
Na carreta que rangia, havia o choro que calava quatro pessoas e um projeto de gente. Todo menino nasce para ser um rei e governar seus sonhos. Havia ali um rei governando o ânimo. Um rei "ticudo", e seu cortejo lúgubre cujos arautos trombeteavam guinchos de rodas sem graxa da carretinha puxada por mulas. Dois dias,quase três de viagem, que separavam páginas de vida. Uma antes, lá na Serra do Pinhão, uma família inteira. Depois, a página seguinte, em Gramado, onde "ninguém" era o nome dos que ora chegavam.
É muito estranho voltar. A volta, às vezes por saudade, às vezes pela dor, sempre quebra orgulhos. Não orgulho algum em voltar. A volta é humilhante. Voltar sempre é humilhante, para quem quer que volte.

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TIA MARGARIDA
O período que transcorreu logo após a tragédia, creio não precisar descrever. Dor é dor. cada um tem a sua. Lá em casa eram muitas as dores: uma morte, um crime, um desaparecimento (meu pai sumiu, foi julgado à revelia, condenado, mas nunca cumpriu a pena. Com mêdo de uma vingança, desapareceu no mundo).
Mas havia o dia seguinte. É sempre o pior. No momento da tragédia, há uma multidão que deseja participar. Confortar. Depois, um silêncio crepuscular domina tudo. Começa a angústia. A tragédia passou. A dor começou. A angústia é por se saber o que não se pode dominar: o amanhã. O que será do amanhã? Quem seremos amnhã? onde estaremos amanhã? Haverá amnhã? Há. Depois da dor há muitos amanhãs. E todos doem sempre.
Enquanto uma sobrinha de minha avó emprestava um pedaço de terreno, cujo limite eram as próprias paredes do ranchinho de tábuas, fui emprestado a uma tia-avó velha e sem filhos, chamada Margarida. Todos a conheciam como "Tia Margarida". Era casada com um mulato aposentado chamado Arcilio, mas era conhecido como "Tio Alcides". Ranzinza também. Os dois. Um par de velhos ranzinzas. E o fato de não terem filhos os transformava em pessoas amargas e insensíveis. E vou além: eram cruéis.
Pode-se pensar em como podem ser cruéis pessoas que acolhem um bebêzinho órfão de pai e avô, na quase absoluta miséria? Talvez por isso mesmo.
Fiquei lá por mais ou menos uns quarenta dias. Não lembro nada. Seria um fenômeno que eu pudesse lembrar. Mas me contaram com riqueza de detalhes que chego a lembrar com nitidez das cenas que descrevo aqui. Tenho boa memória. Tenho uma excelente memória mesmo. Como eu dizia...do que mesmo eu falava? Ah, sim, Tia Margarida.
Soube por exemplo que meu nome foi trocado pelo casal de velhos. Num desses dias fui levado ao médico e na ficha foi dado meu nome como "Hugo Luiz da Silva". Este foi, aliás meu segundo nome, pois até então eu fui batizado na paróquia de Cazuza Ferreira com o nome de "Paulo Celso Cardoso Borges dos Reis". Paulo, por sugestão de minha mãe. Celso foi idéia do meu pai. Cardoso era meu avô paterno: Assis Brasil Cardoso. Borges, de minha avó materna, uma caboclinha "cafuza", cruza de índio e negro, nascida na Bahia e criada por um casal de alemães, cujo pai adotivo era um pastor. E Reis era por parte de meu avô paterno: Donato Dos Reis, vulgo "Donato Bonito".
Na verdade pouco importava que nome me era dado, pois eu não tinha sido registrado mesmo. Isso só aconteceu aos seis anos de idade, quando fui para a escola pública. Mas eu chego lá. Tem muito brejo no meu caminho ainda até me encontrar com minha primeira professora.
A questão agora era o que a Tia Margarida fazia. Fazia e dizia: que era minha mãe natural!! Claro que poderia dar certo, pois Sara, mulher de Abraão se tornou mãe aos noventa e um anos. Tia Margarida era bem mais jovem. Tinha 58 anos ou próximo disso..a mais. Mas, enfim. Se ela era minha mãe, nada mais natural que eu a chamasse por esse adjetivo: "mamãe". E eu chamava. Fazer o quê? Ela insistia tanto nisso e me deixava comer casquinhas de queijo.
Foram as casquinhas de queijo, na verdade que desencadearam uma encrenca danada entre aquela garotinha de dezesseis anos que tinha me parido e aquela gentil senhora que perambulava pela parentalha, garbosamente miraculava-me como um rebento de sua pureza senil (era caduca mesmo).
As casquinhas de queijo, que gosto até hoje e só não como mais porque acho quem nem todos os queijeiros lavam as mãos ao transportar as bolotas para o mercado, e também porque acho que nem todos os empilhadores de queijo lavam bem as mãos após a visita ao mictório e também..bom. Não tenho comido cascas de queijo ultimamente. Mas na época de Tia Margarida, eu comia sim. Até porque era o que ela me dava como guloseima. E minha mãe (a de verdade) viu isto, no dia em que foi me visitar. Tia Margarida tinha outras visitas e generosa como achava que era, resolveu oferecer um café com mistura. Havia pão, geléia, café, leite, biscoitos e queijo. Mas ninguém podia tocar nas cascas, porque as cascas eram para o nenê.
Minha mãeo (a de verdade, não a velha impostora) viu aquilo e tomou as casquinhas da minha mão, trocando pelo miolo do queijo. A velha viu aquilo e ralhou com ela dizendo: " Não faça isso, minha filha. Assim ele acostuma mal. Ele tem que saber que criança não pode ter tudo o que deseja. Coma você o queijo e deixe que ele coma as cascas. Ele gosta de comer casquinhas. Sempre as come. Gosta também das casquinhas de pão. Eu sempre dou".
Minha mão cândidamente respondeu: "Mas eu não quero que meu filhinho coma casca de queijo. Deixe que eu dou a ele o meu pedaço".
A velha ficou possessa. "Seu filho?", esbravejou? Esta peste é seu filho então? Pois então leva ele daqui. Some com essa sarna, este piolhento. Se ele é teu, vai e cria tu mesma.
"Pois é o que vou fazer", dizze minha mãe. E saiu comigo dali para nossa choupana.
Ainda da Tia Margarida, lembro que alguns anos mais tarde, eu deveria ter sete, talvez oito anos, fui visitá-la, à tarde. Era uma tarde quente. Ela me chamou para dentro e me fez sentar à mesa. Daí, com uma doçura terrivelmente peculiar me ofereceu um pedaço de melancia. Eu adorava melancia. Era tão difícil que tivéssemos melancia em casa, mas quando tinha, minha avó generosamente deixava que a parte maior ficasse comigo. Na verdade, todos comiam muito, pois minha avó comprava sempre as maiores. Pouco comprava, mas quando comprava, era pra valer.
Minhas mãozinhas tremiam de emoção. A boca se enchia d´água e eu já me preparava para as delícias oferecidas pela doce melancia. Mas eu esquecia (na época eu tinha péssima memória, memória de criança) que entre eu e aquela doce melancia..estava Tia Margarida. Com ar astucioso ela tirou a melancia do armário (geladeira era luxo só de ricos), pôs à mesa, serviu-me um suculento pedaço bem generoso e quando eu ia levá-lo à boca, me interrompeu e perguntou com solene preocupação: "Mei filho: Você tomou leite hoje?"
-Não, Tia. Não tomei.
-Você tomou.
_Não. Não tomou.
E retirando o prato com melancia da minha frente sentenciou: "Tomou sim". Não vai comer melancia".
Eu tenho certeza que a vi sorrir escondida.
Pobre Tia Margarida. Quando morreu, na passagem do ano de 1972 para 1973, reuniu os parentes pobres. Todos. Alguns dias depois seus bens foram divididos (Tio Alcides já havia morrido bem antes), coube à minha mãe um belíssimo relógio de parede que tinha o som mais lindo que eu conhecia. Acho que era um relógio americano. Fiquei muito feliz, mas por pouco tempo, pois nem minha mãe, nem minha avó permitiram que aquela tralha ou qualquer coisa que lembrasse a velha inescrupulosa fizesse morada em nossa casa. Que pena. Era um relógio tão lindo.
Mas hoje, lembrando bem, acho que toda vez que o carrilhão tocava, me parecia ver o olho vesgo arregalado da Tia Margarida perambulando pelos cantos escuros e tramando alguma perversidade. Melhor que o carrilhão se fosse mesmo. Melhor assim.

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TIA LINA, TIA ZEZÉ, TIA LEONOR E TIO JOÃO
Todo mundo tem tios. Quase todo mundo. Tio é componente básico de todas as biografias. Quem nunca teve uma tia doida? Um tio bondoso? Quem não dormiu na casa dos tios? E quem nunca teve uma tia gorda na família? Geralmente a mais hilária, tosca, esdrúxula até?
Eu os tive. Todos. Cada um deles com suas peculiares e até hilárias facetas. Por exemplo, diante de algo espantoso, a reação deles era engraçada. Tiao João dizia: "É Tirríiiivii". Tia Margarida s encolhia, arregalhava os olhos, aspirava fundo pela boca e sentenciava: "´Miftéerioo". Minha avó, irmã desse povo exclamava: "Misericóordiaa".
Mas cada um deles também tinha particular riqueza pessoal, humana e humanitária.
Tia Lina era gorda. Tinha um largo e perene sorriso e os olhos finos e puxados, que fortaleciam sua expressão sorridente. Sempre. Conheci-a já velhinha, como todos os demais (para um menino de nove anos, velho era quem tivesse mais que trinta e dois. Todo mundo deve ter (ou deveria ter) um tio bondoso, quem distribua agrados, como os tios e tias que eu tive, que iam de um sorriso, uma história bem contada, um lanchinho ou simplesmente um olhar contemplador que exalasse sabedoria.
Gosto de falar deles, porque me evocam boas lembranças. Uma infância pobre e cercada de percalços que só mais tarde fui comprender a dimensão deles, mas feliz o quando podia ser feliz, por conta deste universo de tios, tias, primos e primas que me cercavam.
Tia Zezé. Dela vale um, dois, muitos capítulos a contar. Vale a lembrança de sua doçura comigo.
Magrinha, muito magrinha, morreu aos oitenta e quatro anos, mas com lucidez de vinte. Caminhava agachadinha e vestia sempre um vestido de algodão ou de chita que ia até quase os pés, comlementado por um perene avental, sua marca, sua vida. Avental é algo digno, nobre, pois mais que uma proteção da roupa, é uma bandeira de labor. Pois Tia Zezé, tinha seu avental, que para mim lembra batata doce assada com leite gordo até hoje. Era uma identidade. Marca sua. Um magro avental de algodão xadrez surrado. Modesto, sem nenhuma vaidade.
Na companhia de Tia Zezé e seus filhos (Jeremias, Elias, Ananías (o nome certo é Ananísio, mas acho que nem ele lembra disso), Zacarías, Malaquias, Isaías e Saulo, entre os homens, e Cândida, Alzira e Raquel, as mulheres).
Jeremías e Saulo viviam junto com ela. Saulo, o "nenê" morreu aos cinquenta e quatro anos. Era especial. Era downiano. Jeremias morreou, acho que perto dos sessenta. Não lembro a idade, mas lembro do seu jeitão sempre cortês e alegre. Um tipão de bem com a vida, fosse ela qual fosse. Falava alto, talvez pelo costume em trabalho, porque gerenciava uma serraria. Era muito magro, como todos os outros irmãos. Usava um bigodinho demodê sempre bem aparado, e no cabelo algo que fazia brilhar. Não sei o que era, mas gostava do cheiro. Porque gostava dele também. Fiz dele a figura do pai que não conheci. Uma espécie de pai, amigo e irmão mais velho. Era meu herói. Eu achava engraçado e importante tudo o que ele me dizia. Aprendi desde cedo que com um menino deve-se sempre falar como se falasse com um adulto. Com respeito. A gente não esquece nunca mais. Era assim que Jeremias nos tratava, a todos. A mim e aos seus sobrinhos. Indistintamente. Aprendi com ele a tomar chimarrão. Com ele tomei gosto pelo trabalho rude, cavar buracos, levantar cercas, plantar moirões e podar parreiras. Ele me ensinou que moranguinho "de sapo" (silvestre)" poderia ser uma iguaria digna de um palácio, se cortado ao meio, adoçado e adicionado água fria. Foi com ele que aprendi  que todos somos iguais diante duma cuia de chimarrão, um ritual de respeito e reflexão. Aprendi que se eu trabalhasse algumas horas livres por semana, eu não seria um marginal, mesmo sendo de menor, mas poderia obter a dignidade de poder pagar meus lanches do fim de semana e a entrada do cinema, nas matinés. Era pouco, mas era digno. E prazeroso trabalhar com ele na chácara, como chamava um lote separado dentro de suas terras e cheio de frutíferas, parreira, horta rasteira, um tesouro de prazer com cheiro de terra e gosto de natureza. Mais gostoso ainda era a hora do "fristique" (aportuguesamento do alemão Früstick" - lanche) que Tia Zezé nos levava numa grande cesta de vime, lá pelas quatro da tarde, abastecida com Café com leite, pão caseiro, um pedaço de lingüíça, marmelada, batata doce assada, biscoito e moranga assada para comer com leite. Tudo na mesma cesta. Não poderia haver vida melhor que aquela. O cheiro da terra ali gritando, exalado das covas dos palanques, e o vento da tarde batendo nas folhas dos caquizeiros e pessegueiros pipocando de passarinhos e borboletas douradas.
E sempre junto de nós iam dois cuscos pulguentos e amistosos, que deitavam aos pés do Saulo e do Jeremias, dedicados a nos fazer guarda.
E havia o Saulo, doce como um menino de três anos. Ciumento como um menino de três anos. Despojado, como um menino de três anos. Não sabia levantar uma enxada. Nem o machado. Não sabia nem empurrar um carrinho de mão. Mas sabia nos fazer rir com sua ingenuidade, quando cantava, tentava falar em inglês (o Jeremias resolveu estudar depois de adulto, e tudo o que aprendia, "ensinava" ao Saulo). Assim eu lembro da Tia Zezé. Do Jeremias, do Saulo. Assim eu sinto uma saudade doce da minha infância feliz.

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