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quarta-feira, junho 23, 2004

Vergonha na Cara
Paulo Cardoso

Isso é um negócio que uns têm. Outros não. Eu explico: mentira por exemplo. Quem admite que é mentiroso, mas assim , na cara dura, deslavado? Que eu saiba, ninguém. Pois muita gente é. E se for chamado de mentiroso, tipo assim, na lata, no dedo em riste, ah, mas vira bicho. Diz que lhe ferem os brios, e que pataquá, e etecétera. Mas continua sendo mentiroso. E sem caráter. E como, mas como tem gente desse tipo.
Vejamos um exemplo: Ah, esta é uma prova para saber se você tem caráter, se é honesto, se tem vergonha na cara e se não é mentiroso. Vamos ao caso:
Você está fazendo algo, mas não se caracteriza como algo absolutamente urgente. Nada o impede de divergir do assunto uns minutinhos , porque não fará a menor diferença. E o telefone toca. Pronto: está armada a circunstância propícia para começar sua cota de mau caratismo do dia. Talvez a primeira de uma série delas. Bem, nesse tempo, o telefone já tocou novamente duas vezes. Voce grita: “Mas ninguém atende essa merda de telefone?” (esqueci de mencionar que a merda do telefone está na mesa à sua frente. Alguém é generoso e atende:
- Alô! Quem? Fulano? Ah, … (e voce imediatamente inicia um balé de sinais pra saber quem é).
- Um momento, sim. Vou ver se está. Aí entra “Kalinka”, aquela outrora tão linda e sentimental melodia russa, agora tão banalizada pelo som de “bits”. Diria até que se trata já do hino nacional da mentira.
E você diz, aos gestos apavorados de uma coreografia sofrida que “de jeito nenhum. Que você soube de um parente em coma no Alasca e que foi obrigado a prestar solidariedade a uma família de afegãos que dependiam emocionalmente desse parente, porque eram refugiados no Egito”. Isso. Essa seria uma desculpa aceitável pra não atender nenhuma espécie de telefonema. Afinal, o que as pessoas pensam? Que podem pegar num telefone e sair ligando pras pessoas? Mas com quê direito?
- Alô. Desculpe a demora…é que tive que correr atrás do avião na pista molhada, mas já havia decolado..infelizmente..foi visitar..blá..blá…blá.
- Não, infelizmente não há a menor previsão de retorno, não pelo menos enquanto o PT estiver no governo.. mas, o senhor gostaria de deixar recado? (e diz isso com a voz mais cândida do mundo) Não? Deixe então seu telefone, que o fulano vai ligar, assim que retornar..está anotadinho aqui. Não se preocupe. Obrigado.
As desculpas variam. Ora é para o Alasca. Outra vez é desencalhar o Rainbow Warrior dum poço de petróleo incendiado pelos anti-ecologistas no Cáucaso. Tem vezes que não há desculpa alguma: simplesmente o telefone fica fora do gancho (eu ainda vou escrever sobre isso: porque raios se chama “gancho”, se nem gancho tem mais. Ou por que se chama “discar”, se é tudo com teclas?), e a vítima que se lasque.
E então: pronto. Você mentiu. Mentiu descaradamente. Mentiu porque é um covarde. Mentiu porque não tem a menor consideração com as pessoas. E mesmo que na outra linha esteja um chato, voce mentiu porque não tem peito pra dizer: Pô, não me amola. Eu não quero falar com você. Não me ligue.
Mas por que se expor, se mentir é mais barato? Mais divertido? Menos agressivo? Afinal, você É civilizado. E nesse caso, mentir é uma marca de sutil elegância.
E depois você se queixa que este mundo está pior, porque as pessoas não são verdadeiras. Porque os valores morais foram apagados pela busca do ter em lugar do ser. Pelo mau caratismo dos outros.
E há outras mentiras que varrem a sua vida. A mentira do cheque que um caloteiro lhe passou, e por isso não pôde saldar um compromisso no dia, quando simplesmente você não tem coragem de dizer: “Não pude te pagar hoje. Calculei mal, errei no meu planejamento. Gastei o que não podia e comprei o que não devia, e agora me ferrei. Mas sempre tem outro na ponta da linha. Sempre os outros são os culpados pelos nossos infortúnios.
Por que não assumir de uma vez, passar uma vassoura na sujeira da nossa vida, assumir que cometemos burradas atrás de burradas e dizer: pronto. Desabafei. Errei. Fiz besteira. Mas não quero mais errar. Não quero mais mentir, não quero mais emporcalhar minha honra nem fazer as pessoas de bobas. Não quero mais embromar as pessoas. E se o fizer, quero ter a dignidade de voltar atrás e dizer: “Me perdoe, porque eu fui sacana”.
Mas, claro, que isso quem tem que fazer são os outros. Você é perfeito. E se você é perfeito, então você é quase um deus. E se você se sente um deus, então você é um mentiroso, porque Deus só há Um. E nunca mentiu.

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